Francisco convocou as organizações populares a transformar o mundo

21/03/2014 11:58
 
[ENTREVISTA] Juan Grabois
 
 
Adital
Juan Grabois é dirigente do Movimento de Trabalhadores Excluídos, organização recicladora, que se fez conhecida em nível mundial, quando participou, no mesmo nível de chefes de Estado de todo o mundo, da assunção de Jorge Bergoglio como Papa, há um ano.
Grabois, de relação próxima com Francisco, conta suas impressões desses primeiros 365 dias de um argentino no Vaticano. Dá detalhes da relação do Papa com as organizações populares, fala sobre a crítica de Bergoglio ao "livre mercado” e também tem tempo para opinar sobre seus detratores.
Qual é o vínculo que o MTE tinha com Bergoglio antes de sua assunção ao Vaticano?
A relação com Bergoglio surgiu em 2005, à raiz de seu apoio em um conflito que o MTE levava adiante com o governo da Cidade de Buenos Aires, para encaminhar um projeto que buscava a erradicação do trabalho infantil no setor de reciclagem.
O que os motiva a estar na posse do Papa Francisco, sobretudo com o que se vinha falando esses dias sobre a trajetória prévia de Bergoglio?
A caracterização que alguns setores têm sobre a trajetória de Bergoglio está influenciada por dois fatores. O primeiro tem que a ver com a personalidade de Bergoglio, que, durante sua carreira, como arcebispo de Buenos Aires, teve um trabalho pastoral no campos social e de apoio às organizações populares, e o fez sempre de uma maneira discreta, seguindo sempre o preceito evangélico de que quando dás não tens que andar mostrando. Isso desde o ponto de vista interno: não se conhecia o trabalho dele aqui. Se conhecia a equipe de sacerdotes que atuavam nas vilas de emergência, mas não que havia sido uma criação de Bergoglio. Esta é uma coisa única no mundo: que haja uma paróquia específica para o tema.
E, por outro lado, existia também uma campanha, aprofundada logo após a eleição de Ratzinger, quando já havia circulado a possibilidade de eleição de Bergoglio, alavancada através de três organismos: a Fundação Ford, o British Council e a National Endowment for Democracy (NED), três organismos que, casualmente, estão envolvidos, neste momento, tanto nos acontecimentos de desestabilização na Venezuela como na Ucrânia. Através de seus porta-vozes nacionais, desenvolveram uma teoria sobre uma suposta posição "pouco comprometida” de Bergoglio durante o processo da ditadura na Argentina. Inclusive, disseram que ele não havia protegido alguns sacerdotes e logo um deles desmentiu categoricamente isso com uma carta desde a Alemanha.
Nós não tivemos nenhuma dúvida na hora de participar de sua alçada a sumo pontífice, porque apostamos no pensamento próprio. Pensamos que a militância e, sobretudo, a juventude tem que ter um pensamento próprio. Nós víamos, desde 2005, em Bergoglio não somente um homem que apoiava nossas lutas, mas uma das vozes mais claras contra o sistema capitalista no mundo em sua fase atual, e um projeto de resistência humanista frente à destruição do ambiente e da comunidade humana por parte dos setores concentrados de poder econômico.
- Francisco criticou a teoria do livre mercado na exortação apostólica. Por que?
Esse tema é uma continuidade do pensamento de Bergoglio. Já em sua participação na última Conferência Episcopal Latino-Americana, há uma crítica explícita ao capitalismo e, agora como Papa, como pastor universal dos católicos, faz uma crítica aberta à "teoria do derrame”, que a menciona com nome e sobrenome na Exortação Apostólica. Ali, disse que acreditar nesta teoria é uma manipulação, ou ter uma confiança tosca nas bondades não somente do mercado, mas naqueles que detêm o poder econômico. Esse tema está dentro da doutrina da igreja neste momento, considerando claramente onde está a raiz das injustiças sociais no mundo contemporâneo. Por outro lado, também é importante destacar que Francisco faz uma crítica estrutural e, em várias passagens da Exortação Apostólica, manifesta que, sem resolver os problemas estruturais, não se vai resolver absolutamente nenhum problema. Ou seja, que, apesar dos atos esporádicos de generosidade, pequenos, contribuírem para criar um clima comunitário, há que dar uma resolução estrutural para uma situação de injustiça, que está levando a humanidade a uma enorme crise equidade e justiça, mas também a uma crise ambiental como produto de um modelo extrativista, consumista, depredador da natureza, que nos coloca no limite da subsistência como espécie.
Tanto o MTE como o Movimento Sem Terra do Brasil e várias organizações sociais de nosso continente apoiaram este primeiro ano de Francisco. O que você acha qual é o papel das organizações populares em seu papado?
Há uma recuperação de uma tradição que a igreja, com todos os seus crimes, erros, pecados e violações ao pensamento cristão, ainda com tudo isso, em muitos momentos da América latina, cumpriu um papel fundamental. Primeiro, na própria origem da independência latino-americana. Logo, nas lutas sociais do século XX. Há uma recuperação dessa tradição, uma recuperação aprofundada.
Enfocam-se não somente os problemas sociais e suas causas estruturais, mas se reivindica a organização popular como ferramenta para a transformação da sociedade. Há uma crítica ao liberalismo, que explica quem de um lado, estão os governantes e, do outro, os governados, sem que haja mediações de organizações sociais ou sindicais no meio, que possam lutar pelas transformações.
Creio que há uma convocatória clara de Francisco às organizações populares, em particular à juventude, para desenvolver uma tarefa militante – também com nome e sobrenome a chamam – de transformação do mundo. De busca de paz e justiça para nossos países, para os povos e para a humanidade. Essa convocatória eu creio que, pouco a pouco, entre os que genuinamente estão comprometidos com o campo popular, vai afetando, porque os povos têm um grande aliado, uma pessoa que chega com suas palavras a milhares e milhares de cristãos e de não cristãos no mundo, concebendo um horizonte de mudança e uma sociedade baseada na igualdade e na fraternidade humana. Nesse sentido, temos a responsabilidade de aproveitar este momento histórico para fortalecer nossas lutas e para avançar nas transformações que nossas sociedades necessitam.
Quais o senhor acredita que foram, desde seu ponto de vista, os fatos mais destacados destes primeiros 365 dias de Francisco como Papa?
Não estou em condições de opinar sobre mudanças estruturais dentro da instituição igreja. O que posso dizer é que houve um clima de mudança e de atitude, que se expressa em coisas simples. Por exemplo, em uma crítica explícita, forte, chocante, que se levanta contra o estilo de vida "principesco” de alguns integrantes da cúria romana, de alguns bispos inclusive, que se manifestavam em coisas absurdas, como a utilização de crucifixos de ouro, de carros de alto padrão, de gastos suntuosos.
Ele tem, dentro de seu ideário, que as mudanças institucionais, se não vão acompanhadas de uma mudança nas motivações das pessoas, tendem a corromper-se novamente, para um lado ou para o outro. Essa guinada tem a ver mais com transmitir, claramente, quais são as condutas que se pode esperar de um bispo e não tanto de fazer mudanças burocráticas dentro da estrutura – que também as fez, mas que, creio eu, não são o mais importante.
Depois, como fatos destacados deste primeiro ano, um que nos toca próximo de nós, é a presença de um trabalhador reciclador, não somente em assunção, mas na primeira fila. Quem mais próximo está, se você ver as fotos, de Bergoglio, quando assumiu como Papa, é um trabalhador reciclador (Sergio Sánchez). Isso é todo um símbolo.
O outro tema que me parece importante foi sua intervenção determinante no que foi a tentativa de bombardeio imperialista sobre a Síria. Ele teve uma intervenção absolutamente determinante para impedir que esse bombardeio acontecesse, o que lhe valeu converter-se no inimigo número um de alguns setores do poder estadunidense, como o Tea Party e a CNN, quem vêm também desenvolvendo uma campanha para difamá-lo e mostrar que estamos ante "um comunista no Vaticano”, e coisas do estilo. Poderíamos dizer que, como disse Dom Helder Câmara, "se faz atos de caridade individuais é um santo, mas se pergunta por que existe a pobreza é um comunista”. O que nós vemos é que já houve algumas intervenções decisivas concretas no suceder histórico da humanidade, que se vai reconhecendo com o passar do tempo, mas, mais além disso, o mais importante é o ar fresco que ele atrai ao coração, à alma e à mente de milhares de pessoas, que, seguramente, irá germinar como semente de justiça em cada um de nós que escutamos.